As cotas raciais são um modelo de ação afirmativa implantado em alguns
países para amenizar desigualdades sociais, econômicas e educacionais
entre raças. A primeira vez que essa medida foi tomada data de 1960, nos
Estados Unidos, para diminuir a desigualdade socioeconômica entre
brancos e negros.
No Brasil, as cotas raciais ganharam visibilidade a partir dos anos
2000, quando universidades e órgãos públicos começaram a adotar tal
medida em vestibulares e concursos. A Universidade de Brasília (UnB) foi
a primeira instituição de ensino no Brasil a adotar o sistema de cotas
raciais, em junho de 2004. De lá para cá o número de universidades que
possuem ação afirmativa baseada em raças só aumentou e hoje já
representa a maioria das universidades federais.
O sistema de cotas raciais no Brasil não beneficia apenas os negros.
Nas instituições públicas da Região Norte, por exemplo, é comum a
reserva de vagas ou empregos para indígenas e seus descendentes. Algumas
universidades também destinam parte de suas vagas para candidatos
pardos.
Independente do tipo de cota racial, para ser beneficiada a pessoa
precisa assinar um termo autodeclarando sua raça e, às vezes, passar por
uma entrevista. A subjetividade dessa entrevista é um dos pontos que
mais geram discussão em relação às cotas raciais. Em 2007, gêmeos
idênticos foram considerados de raças diferentes ao passarem por uma
entrevista na UnB. Um pôde concorrer pelo sistema de cotas raciais, o
outro não. Após repercussão do caso na mídia, a UnB voltou atrás e
considerou os dois irmãos como sendo negros.
O assunto é bastante polêmico e nada indica que um dia deixará de ser. O
Brasil tem atualmente a segunda maior população negra do mundo (atrás
apenas da Nigéria) e é inegável que o país tem uma dívida histórica com
negros e indígenas. Por outro lado, as cotas raciais já prejudicaram
várias pessoas que perderam vagas ou empregos para concorrentes com
menor pontuação ou qualificação.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu recentemente, por
unanimidade, que a introdução de cotas raciais no acesso às
universidades públicas federais não viola a Constituição da República,
seguindo a linha adotada nos Estados Unidos há algumas décadas de
introduzir "ações afirmativas" para corrigir injustiças feitas no
passado. A decisão flexibiliza a ideia básica de que todos são iguais
perante a lei, um dos grandes objetivos da Revolução Francesa.
Ela se origina na visão de que é preciso aceitar a "responsabilidade
histórica" dos malefícios causados pela escravidão e compensar, em
parte, as vítimas e seus descendentes. A mesma ideia permeia negociações
entre países, entre ex-colônias e as nações industrializadas, na área
comercial e até nas negociações sobre o clima.
Sucede que, de modo geral, "compensar" povos ou grupos sociais por
violências, discriminações e até crimes cometidos no passado raramente
ocorreu ao longo da História. Um bom exemplo é o verdadeiro "holocausto"
resultante da destruição dos Impérios Inca e Asteca, na América Latina,
ou até da destruição de Cartago pelos romanos, que nunca foram objeto
de compensações. Se o fossem, a Espanha deveria estar compensando até
hoje o que Hernán Cortez fez ao conquistar o México e destruir o Império
Asteca.
É perfeitamente aceitável e desejável que grupos discriminados,
excluídos ou perseguidos devam ser objeto de tratamento especial pelos
setores mais privilegiados da sociedade e do próprio Estado, por meio de
assistência social, educação, saúde e criação de oportunidades.
Contudo, simplificar a gravidade dos problemas econômicos e sociais que
afligem parte da população brasileira, sobretudo os descendentes de
escravos, estabelecendo cotas raciais para acesso às universidades
públicas do País, parece-nos injustificado e contraprodutivo, porque
revela uma falta de compreensão completa do papel que essas instituições
de ensino representam.
Universidades públicas e gratuitas atendem apenas a um terço dos
estudantes que fazem curso superior no Brasil, que é uma rota
importantíssima para a progressão social e o sucesso profissional. As
demais universidades são pagas, o que prejudica a parte mais pobre da
população estudantil. Essa é uma distorção evidente do sistema
universitário do País. Mas o custo do ensino superior é tão elevado que
apenas países ricos como a França, a Suécia ou a Alemanha podem oferecer
ensino superior gratuito para todos. Não é o nosso caso. Essa é a razão
por que existem vestibulares nas universidades públicas, onde a seleção
era feita exclusivamente pelo mérito até recentemente.
A decisão recente do Supremo Tribunal Federal deixa de reconhecer o
mérito como único critério para admissão em universidades públicas. E
abre caminho para a adoção de outras cotas, além das raciais, talvez, no
futuro.
Acontece que o sistema universitário tem sérios problemas de
qualidade e desempenho, como bem o demonstra o resultado dos exames da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - garantia da qualidade dos
profissionais dessa área -, que reprova sistematicamente a maioria dos
que se submetem a ele, o mesmo ocorrendo com os exames na área médica.
Órgãos do governo como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação, ou o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do
Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, têm feito esforços para
melhorar o desempenho das universidades brasileiras por meio de
complexos processos de avaliação, que têm ajudado, mas não se mostraram
suficientes.
Esses são mecanismos externos às universidades. Na grande maioria
delas, os esforços internos são precários em razão da falta de critérios
e de empenho do Ministério da Educação, que escolhe os reitores, alguns
dos quais, como os da Universidade de Brasília, iniciaram o processo de
criação de cotas raciais como se esse fosse o principal problema das
universidades e do ensino superior no Brasil.
O populismo que domina muitas dessas universidades, há décadas, é a
principal razão do baixo desempenho das universidades brasileiras na
classificação mundial. Somente a Universidade de São Paulo (USP)
conseguiu colocar-se entre as melhores 50 nesse ranking.
O problema urgente das universidades brasileiras é, portanto,
melhorar de nível, e não resolver problemas de discriminação racial ou
corrigir "responsabilidades históricas", que só poderão ser solucionadas
por meio do progresso econômico e educacional básico.
O governo federal parece ter tomado consciência desse problema ao
lançar o programa Ciência sem Fronteiras, que se propõe a enviar ao
exterior, anualmente, milhares de estudantes universitários, imitando o
que o Japão fez no século 19 ou a China no século 20 e foi a base da
modernização e do rápido progresso desses países.
Daí o desapontamento com a decisão da Suprema Corte não só por ter
sido unânime, mas também por não ter sido objeto de uma tomada de
posição de muitos intelectuais formadores de opinião, exceto notáveis
exceções, como Eunice R. Durham, Simon Schwartzman, Demétrio Magnoli e
poucos outros que se manifestaram sobre a inconveniência da decisão.
O único aspecto positivo na decisão do Supremo Tribunal Federal foi o
de que simplesmente aceitou a constitucionalidade das cotas raciais,
cabendo aos reitores, em cada universidade, adotá-las e implementá-las.
Há aqui uma oportunidade para que os professores mais esclarecidos
assumam a liderança e se esforcem para manter elevado o nível de suas
universidades sem descuidar de tornar o acesso pelo mérito mais
democrático, e sem a adoção de cotas raciais, como algumas universidades
estaduais de São Paulo estão fazendo.